Neurose e loucura parecem
ter um ponto em comum, além do afastamento da realidade: a pobreza interior.
Essa é uma das conclusões de Medard Boss, autor de Angustia, Culpa e Libertação (Livraria Duas Cidades), editado entre
nós no ano passado. Agora a Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial
- Daseinanalyse, por iniciativa do psicoterapeuta Solon Spanoudis, publica um
resumo do pensamento de Boss com referência a alguns aspectos da analise
psicológica e das possibilidades da psicoterapia. A principal revelação com
encontro com Boss é a espantosa
independência desse estudioso que colaborou pessoalmente com Freud, Ernest
Jones, Reich e Jung, considerando, no entanto, o passo decisivo de sua vida uma
grande aproximação com Martin Heidegger.
No que se refere ao problema sempre polêmico dos sonhos, Boss
fala de uma paciente sujeita a depressões que sonhava repetidamente estar encolhida num canto de um
vagão de carga, no fundo de um oceano gelado, em completa desolação e ausência
de vida. Na teoria freudiana, o oceano é símbolo do ventre materno. Interrogado
a respeito, Jung limitou-se a dizer que aquele oceano devia significar outra
coisa e que, em última análise, era o arquétipo do inconsciente coletivo. Para
Boss, o importante é que a existência da paciente estivesse aberta apena para aquela
pobreza, permanecendo fechada para todas as outras possibilidades da vida, como
o céu azul, as plantas e outras vidas. “Sempre que uma existência é assim
fechada e não permite que suas possibilidades sejam livremente cumpridas, esta
afinada na depressão.” Se uma existência é aberta para realizar suas
possibilidades de relacionamento com as coisas, esta afinada na felicidade.
Tudo o que se pode dizer daquele sonho repetido, explica Boss, ~e que a
existência da sonhadora , no momento do sonho pelo menos, estava afinada na
depressão e na solidão e cerrada para a percepção de todas as coisas vivas.
Medard Boss simplesmente afasta a suposição de
que as coisas no sonho podem significar algo que está encoberto, porque isso
pressupõe uma segunda pessoa que sabe que tem qualquer coisa a esconder. “As
coisas sonhadas significam nada mais aquilo que mostram”, conclui. Fora do
sonho, a paciente pode perceber que sua existência é semelhantemente vazia. A
pobreza interior deixara ali suas marcas
e toda aproximação terapêutica tinha de partir das significações vistas no sonho, em tudo semelhante às da
vida em estado de vigília. E é neste estado que podemos tomar contato com
nossas significações.
Segundo Boss, “todos
os sintomas patológicos corporais e os psíquicos são sempre privações e podem
ser compreendidos como reduções de possibilidade de entender uma coisa em toda sua amplitude e riqueza de conteúdo”. A
neurose a e psicose são exatamente isso, em variados graus. A Dasein Analytik – termo formulado por Heidegger,
abrangentemente
de todos os caracteres da existência humana, mais uma ontologia que uma
psicologia – tenta descrever a maneira exata da distorção do entendimento, e da
redução do entender. O entendimento das coisas em todo seu significado é parte
fundamental da psicoterapia. Por isso, insiste Boss, na psicoterapia é preciso apenas
descrever tão adequadamente quanto possível o fenômeno estudado. Um
esquizofrênico, por exemplo, dispõe de poucas possibilidades de relacionamento com
o mundo e as pessoas. Os débeis mentais percebem ainda menos. Sendo possível
uma abertura, uma relação com a humanidade, há sempre melhora.
A maneira de existir do paciente neurótico ou psicótico é
um modo de existir humano que pertence também, como possibilidade, a nós
mesmos. “Nós dispomos dessa possibilidade, mas não estamos reduzidos a ela,
enquanto que os doentes estão limitados àquela única maneira de existir”. Assim
afirma Medard Boss, o psicoterapeuta tem , em primeiro lugar , de mostrar ao
paciente que também há outros e mais livres modos de existir e, em seguida,
dar-lhe coragem de experimentar esses outros modos. Nesse ponto, a Daseinanalyse é original e
extraordinariamente criadora, se comparada com todas as correntes da
psicoterapia que abriram caminhos a partir do começo deste século. Em Heidegger, fonte de inspiração da Terapia Existencial, tudo se refere ao
ser. Nada, portanto, é filosofia, sendo sempre ontologia. O entendimento do
homem ocupa lugar de honra naquele pensamento. NA cura do espírito humano – vastamente
lesado em nossa época – tudo se limita ao entendimento, porque a possibilidade
de entender constitui a essência da existência
do homem. O que Heidegger chamava de “salto do pensamento” é a talvez a
coisa mais importante, entre todas as demais. Esse salto leva à compreensão da
existência “como entendimento estendido através
de todo o alcance do que chamamos mundo”.
Sendo a pobreza interior a fonte de todo sofrimento do
chamado psiquismo, a única terapia razoável é aquela que supõe o conhecimento. Medard Boss usa uma imagem para
facilitar a apreensão do que deseja transmitir – e nem sempre é fácil entende-lo,
face aos nossos condicionamentos -, expressando-a dessa forma: “Comparo o
entendimento com a luz que atravessa o espaço e ilumina as coisas, mas não as
faz. A Dasein Alalytik só vê como é
a luz, a qual não faz as coisas mas permite que elas apareçam, que se tornem
visíveis”. E Boss acrescenta que
essa visão ontológica não pode ser provada cientificamente. Muito menos um fato
científico pode provar a verdade de uma visão ontológica. “Ao contrário –
acrescenta -, cada percepção de uma coisa, cada prova cientifica pressupõe uma
visão ontológica”. O que não é de admirar. Afinal, embora os cientistas
pretendam estar ligados somente às coisas empíricas, nada tendo a ver com a
filosofia, eles se baseiam também numa filosofia. “Justamente esta – diz Medard
Boss – que pressupõe que somente o mensurável existe verdadeiramente.”
in Jornal da Tarde, O
Estado de São Paulo
Quinta-feira, 28-10-76
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