quarta-feira, 5 de junho de 2013

ENCONTRO COM BOSS

Neurose e loucura parecem ter um ponto em comum, além do afastamento da realidade: a pobreza interior. Essa é uma das conclusões de Medard Boss, autor de Angustia, Culpa e Libertação (Livraria Duas Cidades), editado entre nós no ano passado. Agora a Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial - Daseinanalyse, por iniciativa do psicoterapeuta Solon Spanoudis, publica um resumo do pensamento de Boss com referência a alguns aspectos da analise psicológica e das possibilidades da psicoterapia. A principal revelação com encontro com Boss é a espantosa independência desse estudioso que colaborou pessoalmente com Freud, Ernest Jones, Reich e Jung, considerando, no entanto, o passo decisivo de sua vida uma grande aproximação com Martin Heidegger.
No que se refere ao problema sempre polêmico dos sonhos, Boss fala de uma paciente sujeita a depressões que sonhava  repetidamente estar encolhida num canto de um vagão de carga, no fundo de um oceano gelado, em completa desolação e ausência de vida. Na teoria freudiana, o oceano é símbolo do ventre materno. Interrogado a respeito, Jung limitou-se a dizer que aquele oceano devia significar outra coisa e que, em última análise, era o arquétipo do inconsciente coletivo. Para Boss, o importante é que a existência da paciente estivesse aberta apena para aquela pobreza, permanecendo fechada para todas as outras possibilidades da vida, como o céu azul, as plantas e outras vidas. “Sempre que uma existência é assim fechada e não permite que suas possibilidades sejam livremente cumpridas, esta afinada na depressão.” Se uma existência é aberta para realizar suas possibilidades de relacionamento com as coisas, esta afinada na felicidade. Tudo o que se pode dizer daquele sonho repetido, explica Boss, ~e que a existência da sonhadora , no momento do sonho pelo menos, estava afinada na depressão e na solidão e cerrada para a percepção de todas as coisas vivas.
Medard Boss simplesmente afasta a suposição de que as coisas no sonho podem significar algo que está encoberto, porque isso pressupõe uma segunda pessoa que sabe que tem qualquer coisa a esconder. “As coisas sonhadas significam nada mais aquilo que mostram”, conclui. Fora do sonho, a paciente pode perceber que sua existência é semelhantemente vazia. A pobreza interior  deixara ali suas marcas e toda aproximação terapêutica tinha de partir  das significações  vistas no sonho, em tudo semelhante às da vida em estado de vigília. E é neste estado que podemos tomar contato com nossas significações.
Segundo Boss, “todos os sintomas patológicos corporais e os psíquicos são sempre privações e podem ser compreendidos como reduções de possibilidade de entender uma coisa em toda  sua amplitude e riqueza de conteúdo”. A neurose a e psicose são exatamente isso, em variados graus. A Dasein Analytik – termo formulado  por Heidegger, abrangentemente de todos os caracteres da existência humana, mais uma ontologia que uma psicologia – tenta descrever a maneira exata da distorção do entendimento, e da redução do entender. O entendimento das coisas em todo seu significado é parte fundamental da psicoterapia. Por isso, insiste Boss, na psicoterapia é preciso apenas descrever tão adequadamente quanto possível o fenômeno estudado. Um esquizofrênico, por exemplo, dispõe de poucas possibilidades de relacionamento com o mundo e as pessoas. Os débeis mentais percebem ainda menos. Sendo possível uma abertura, uma relação com a humanidade, há sempre melhora.
A maneira de existir do paciente neurótico ou psicótico é um modo de existir humano que pertence também, como possibilidade, a nós mesmos. “Nós dispomos dessa possibilidade, mas não estamos reduzidos a ela, enquanto que os doentes estão limitados àquela única maneira de existir”. Assim afirma Medard Boss, o psicoterapeuta tem , em primeiro lugar , de mostrar ao paciente que também há outros e mais livres modos de existir e, em seguida, dar-lhe coragem de experimentar esses outros modos. Nesse ponto, a Daseinanalyse é original e extraordinariamente criadora, se comparada com todas as correntes da psicoterapia que abriram caminhos a partir do começo deste século. Em Heidegger, fonte de inspiração da Terapia Existencial, tudo se refere ao ser. Nada, portanto, é filosofia, sendo sempre ontologia. O entendimento do homem ocupa lugar de honra naquele pensamento. NA cura do espírito humano – vastamente lesado em nossa época – tudo se limita ao entendimento, porque a possibilidade de entender constitui a essência da existência  do homem. O que Heidegger chamava de “salto do pensamento” é a talvez a coisa mais importante, entre todas as demais. Esse salto leva à compreensão da existência “como entendimento estendido através  de todo o alcance do que chamamos mundo”.
Sendo a pobreza interior a fonte de todo sofrimento do chamado psiquismo, a única terapia razoável é aquela que supõe o conhecimento. Medard Boss usa uma imagem para facilitar a apreensão do que deseja transmitir – e nem sempre é fácil entende-lo, face aos nossos condicionamentos -, expressando-a dessa forma: “Comparo o entendimento com a luz que atravessa o espaço e ilumina as coisas, mas não as faz. A Dasein Alalytik só vê como é a luz, a qual não faz as coisas mas permite que elas apareçam, que se tornem visíveis”. E Boss acrescenta que essa visão ontológica não pode ser provada cientificamente. Muito menos um fato científico pode provar a verdade de uma visão ontológica. “Ao contrário – acrescenta -, cada percepção de uma coisa, cada prova cientifica pressupõe uma visão ontológica”. O que não é de admirar. Afinal, embora os cientistas pretendam estar ligados somente às coisas empíricas, nada tendo a ver com a filosofia, eles se baseiam também numa filosofia. “Justamente esta – diz Medard Boss – que pressupõe que somente o mensurável existe verdadeiramente.”

in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Quinta-feira, 28-10-76

sexta-feira, 31 de maio de 2013

ENTRE O CÉU E A TERRA

          Martin Heidegger referiu-se um dia, em seu luminoso O Caminho do Campo ( Der Feldweg), ao crescimento interior do homem, tão distante e diverso da maturação do corpo. Falou então de uma dessas verdades fundamentais que não costumam ser encontradas nos livros eruditos, nas enciclopédias exaustivas e nem mesmo nas palavras dos condutores de homens. Dizia ele: "A consistência e o perfume do carvalho insinuam a lentidão e a constância com que a árvore cresce. O próprio carvalho da testemunho de que só esse crescer pode engendrar o que permanece e frutifica. Crescer quer dizer abrir-se à amplidão do céu mas também deitar raízes nas profundezas da terra. Tudo que é real e autêntico só atinge a maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, essas duas coisas: disponível ao apelo do céu mais alto e protegido pelo resguardo da terra que tudo oculta e produz".
          A segurança psicológica, impossível na prática, é uma velha e almejada aspiração humana. Se ela é impraticável, no entanto, uma relativa tranquilidade é requisito essencial a todo trabalho criativo – inclusive o mais importante de todos, que é a maturação interior, finalidade e desígnio daqueles que levantam uma ponta do véu que cobre sua própria natureza. Essa estabilidade mínima do corpo e da alma permite um estado de repousado alerta – não há paradoxo aqui – em que atuam forças inteiramente estranhas à consciência humana, tal como a conhecemos. De fato, não é de hoje que algumas cabeças privilegiadas falam da existência de “uma outra margem”  no espírito do homem, o que foi confundido com “vida além da morte”, existências anteriores em outros corpos, e variações no gênero. Não é oportuno discutir aqui essas interpretações e as causas que as determinam. Importa saber que a consciência – essa noção de um eu no centro dos acontecimentos, seus desejos e aversões – não é responsável pelo que há de realmente criativo do indivíduo, nem abre caminho para a maturidade, ou na direção do “céu mais alto” de que fala Heidegger. A consciência é rotineira, ardilosa, só deseja sua própria permanência, teme tudo o que parece novo, olha apenas na direção que quer. Ela nunca esta disponível aos apelos da vida e se busca o “resguardo da terra” e por puro medo e por convencionalismo.
          Nas primeiras linhas de O caminho do Campo Martin Heidegger  revela ao leitor o que ele, pessoalmente, não teria talvez muita esperança que fosse disseminado. Se o homem compreender o exemplo do carvalho – o crescer que engendra e frutifica – manterá seus pés firmes plantados no chão, como profundas raízes, e poderá ter sua cabeça voltada para o alto, de onde vem toda inspiração, bem como a percepção da beleza, o conhecimento de si mesmo e do mundo. Os que são como o carvalho não podem – nem pensam nisso com certeza - fazer ninguém à sua semelhança. Em toda sua intensidade, ser ocupa todo espaço e todo tempo, e não deixa margem para os disfarces da vaidade que assomam como trabalho missionário, argumentação passional ou competição. Meister Eckardt pensador e teólogo da escola renana, criou uma palavra, Istkeit, para designar essa coisa e ao mesmo tempo indescritível que é ser, pura e totalmente.
          O Psiquiatra Anthony Storr, em artigo publicado no The Observer, há alguns anos, falava no conhecimento precário que temos das demais pessoas e do mundo em redor, quando nos falta uma certa e decisiva forma de maturação ou crescimento. “Quando, em nossa vida, entramos em contato com situações novas e nos colocamos diante de pessoas desconhecidas, arrastamos conosco, nesses contatos, os preconceitos formados no passado e as experiências ganhas no trato com outras pessoas e situações. Esses preconceitos nós os projetamos sobre aqueles diante dos quais nos colocamos. De fato, chegar a conhecer alguém é uma questão de eliminação de projeções. Questão de afastar a cortina de fumaça de como imaginamos que ela é, para substituí-la pela realidade de como ela realmente é”. Essa “eliminação de projeções”, difícil e rara – quando sequer é percebida como necessidade – resulta do amadurecimento interior e não pode ser ministrada em gotas, naturalmente. Não será pelo esforço, pela chamada força de vontade, pela vaidade, nem no divã do analista ou orando automaticamente no templo, que chegaremos lá. Há que compreender, antes de tudo, a realidade dessas coisas. Há que colocar os pés no chão, protegendo-se “no resguardo da terra”, a fim de viver com simplicidade e realismo o dia-a-dia. E há, finalmente, que entregar-se “ao apelo do céu mais alto”, a parte mais difícil do desafio.
        A lentidão do processo revela a sua profundidade e a sua inacessibilidade à vontade e ao pensamento do homem. Isso esta, de fato, além de toda iniciativa humana. Esse crescimento interior, essa maturação quase imperceptível – inexistente para alguns, desprezível para outros – são magníficos na medida em que afastam o indivíduo do sofrimento fútil e frequente, mal que vitima a absoluta maioria. Como o espirito atilado de Heidegger captou bem, só seu ritmo natural assegura o advento e a permanência dos frutos.. Se o processo pudesse ser precipitado, controlado e compreendido pelo homem, seria falível, talvez inconsistente, sujeito às variações da vontade humana. Não havia de merecer o resguardo da terra, nem aspiraria ao apelo do céu mais alto. Assim, não seria o que é, não mereceria o nosso espanto de homem comum, nem Heidegger teria falado nele.


in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 6-9-76

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O ESPÍRITO SOPRA

Os rituais e mitos primitivos sustentaram o homem antigo contra essa vaga sensação de desamparo face à morte e ao gigantismo da natureza, que teima em acompanhá-lo até hoje. Durante milênios, ritos obscuros deram ao ser humano a sensação de que tinha um pacto com o desconhecido, e o que sempre foi extraordinário, que esse desconhecido era realidade inarredável. Mais tarde vieram as grandes religiões oficiais, que introduziram o exoterismo e afugentaram para o silêncio das cavernas, mosteiros e eremittérios o esoterismo. Essas religiões, também com seus rituais ofuscantes, lembravam ao homem seu destino divino e seus laços com o transcendental. Com o Iluminismo e, depois, com o Racionalismo, vieram a Ciência e a Tecnologia, essas religiões sem Deus, que ocuparam o vazio criado com o ceticismo puro e conciliaram o homem com a alegria. Hoje uma nova desilusão abala o Homo sapiens: O universo constituído pelo resumo dos resultados obtidos pela ciência e técnicas é mais ou menos absurdo, não faz sentido, uma vez que seus componentes fornecem indicações não compatíveis entre si. As aproximações parciais não completam um todo, não chegam a formar um conjunto unitário. As fórmulas, precisas isoladamente, não constituem uma realidade única, não se associam para formar um único desenho.
Tudo indica que se trata do vazio de novo, aquela teimosa sensação de desamparo - que não precisa ser denominada para ser identificada e muito menos compreendida - tão familiar aos gregos antigos e a tantos outros, inclusive os xamas siberianos. Contra esse vazio há, como houve em todos os tempos, o conhecimento. Não se trata, no entanto, de conhecimento intelectual, verbal, teórico, dualista e vaidoso de si mesmo, no caso. A palavra conhecimento aqui faz referência a alguma coisa impessoal, não relacionada com alguém individualmente, com noções técnicas ou valores mensuráveis em laboratórios. Não se trata igualmente de alguma descoberta nova, uma técnica elaborada, corrente filosófica ou habilidade intelectual. Os homens ouviram falar desse conhecimento em todas as épocas, em todas as partes do mundo.
Não haveria exagero em afirmar que é preciso conviver com esse vazio, é preciso aceitar essa dúvida, é necessário amar essa espécie de insegurança, para travar conhecimento com o fenômeno. Essa não é uma coisa patológica, um processo que deva ser tratado e do qual um homem fique curado. Isso faz parte da individualidade, desse núcleo a que chamamos eu. Somos isso, até certo ponto. Nesse terreno, nada pode ser ensinado, como se ensina uma técnica ou se transmite uma habilidade. Esse conhecimento é pessoal, intransmissível, direto, imediato e intrinsecamente neutro - isto é, não é bom ou mau, agradável ou desagradável, útil ou inútil. Não é, também, nada parecido com os misticismos que andaram em moda nos grandes centros, com gurus, sacerdotes, pastores inspirados, ou coisa semelhante. A respeito dessa insegurança que assusta o homem, e que o lançou em tantas aventuras ritualistas, atrás de uma tranqüilidade que não se obtém com ilusões desse tipo, basta dizer que essa insegurança não pode ser rejeitada, simplesmente.
Dar a ela um rótulo, enquadrando-a nas muitas correntes de pensamento que se multiplicam pelo mundo, nós a repudiamos, ou a dominamos. Isso é bem evidente. Quando chamamos alguma coisa pelo nome, quando lhe acrescentamos um adjetivo, nós estamos controlando essa coisa, de modo sutil, mas estamos. Chamar a tudo isso de especulação, ou fantasia, é simplesmente negar um fato que esta em toda parte e em todo mundo com uma gota de consciência. Toda essa agitação humana - através das sutilezas do pensamento ou por meio de ação dinâmica - tem um mesmo sentido e aponta na mesma direção. Estamos sempre nos ocupando, temendo um encontro frontal justamente com esse vazio - que a bem da verdade não devia ser chamado assim, porque não se trata de vazio propriamente. O importante no entanto, é estar atento ao que acontece com a única pessoa que podemos ver por dentro e por fora, embora raramente com isenção, nós mesmos.
As religiões, quase todas elas, tiveram sempre dois aspectos e falaram basicamente das mesmas coisas. Esses aspectos não foram intencionalmente produzidos, mas corresponderam a necessidades ainda hoje identificáveis. A maioria dos homens vive em absoluta alienação, isto é, totalmente dissociada de sua realidade pessoal imediata. Para esses, tudo o que escapa às funções biológicas e aos temores mais elementares é inexistente. Nenhum conhecimento intelectual pode mudar essa situação. Para outros, no entanto, alguns fatos fundamentais são perceptíveis desde cedo, e se a luta pela sobrevivência não concorre para embrutecer essa percepção, esses fatos se impõem tão logo o indivíduo consegue conhecer alguma coisa de si mesmo. Esse conhecimento, infelizmente, raramente se faz num divã de psicanalista. Ao contrário mesmo - e a observação desses aspectos leva muito longe, às vezes - costuma dificultar muito o empreendimento. Esses fatos fundamentais, que se manifestam aparentemente ao acaso, são referidos pelo homem desde que o mundo é mundo. Como "o Espírito sopra ao acaso", não há muito o que dizer sobre essa desconcertante manifestação do desconhecido, a não ser que tudo o que lhe diz respeito seja impossível de ser definido, posto em classificações, preso em rótulos, limitado em verbetes enciclopédicos, dissecado em laboratórios, armazenado em computadores ou sequer fixado na memória. E o pior é que "o Espírito sopra ao acaso".

in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 18-12-78

O CRIMINOSO COMO VÍTIMA

Afora a grande charlatanice da superioridade racial ,ninguém jamais ousaria afirmar, em sã consciência, que o ser humano é melhor ou pior nessa ou naquela latitude, com essa ou aquela coloração de pele , vivendo nessa ou naquela cultura. Aceita a premissa de que os homens são fundamentalmente iguais - e essa verdade está impressa no código genético da espécie humana - resta determinar a razão das profundas , embora não numerosas , diferenças de comportamento social num povo ou noutro. Diz o Time , por exemplo, que na Holanda as prisões estão desaparecendo graças a um bem-vinda escassez de criminosos. Lá, ntre 13 milhões de habitantes , há apenas 2.800 pessoas cumprindo pena nas prisões , das quais só 42 receberam sentenças superiores a cinco anos.A filosofia do sistema penitenciário holandês tem encarado tradicionalmente o preso como uma espécie de enfermo que precisa ser recuperado para a vida normal. Isso porque os penalistas daquele país sempre se recusaram a conceder ao estado o direito de punir os que cometiam atos anti-sociais . Para eles - e essa mentalidade só floresceu com a criação de um clima em que os principais valores do humanismo foram sempre estimulados - os chamados delinqüentes eram ovelhas tresmalhadas do rebanho , que precisavam ser reconduzidas ao aprisco pelo grande pastor estatal . Uma concepção , antes de tudo, principalmente cristã.Tratada como doença , a criminalidade encontrou nisso um desestímulo inicial. Os grandes feitos marginais não eram tratados com esse misto de admiração e censura comum no noticiário dos jornais , gerador da secreta admiração existente em todo coração jovem contestador pelos Rafles, Arsene , Lupins ,Pepe-le-Mokos e outros heróis menos votados do baixo mundo. Talvez não seja por outra razão que a moda vista o moço de hoje como o bandido de antigamente. O fato é que a imagem do doente é muito menos sedutora que a do aventureiro.O direito de punir é ,sem dúvida ,muito discutível . Tem o Estado o direito de afastar o elemento anti-social e tem o dever de o recuperar ,disso ninguém duvida. A idéia de punição , acreditamos , é remanescente de conceitos primitivos , ou de qualquer reentrância do Direito Divino, e é muito pouco compatível com as modernas noções jurídicas - que pelo menos em teoria a humanidade , face ao seu conhecimento mais nítido do Bem e do Mal. Ora, esses fatos e essas concepções tornam antiquada toda a terminologia do sistema penal , em que " presidiários" , "regime carcerário", " pena" , "sentença", "correcional" , são anacronismos que devem deixar o âmbito do direito vivo e passar à esfera das curiosidades verbais e dos vocábulos em desuso.A decisão do governo da Guanabara de tornar obrigatório e remunerado o trabalho em todas as prisões do Estado é um primeiro e largo passo para a humanização do sistema penal entre nós. A República Federal da Alemanha está em vésperas de aprovar um novo Código Penal. Agora que o projeto da mesma lei brasileira vai entrar em discussão no Congresso Nacional , era oportuno um exame das novidades introduzidas pelos penalistas germânicos em seu sistema penitenciário . Segundo noticiário dos jornais , as autoridades alemãs já se anteciparam às novas determinações da lei e instituíram departamentos da terapêutica social em mais de um estabelecimento penal do país . Num presídio feminino de Francforte os filhos são criados com as mães que estão sendo reabilitadas . O ambiente é considerado sadio e adequado à formação de crianças , pelos psicólogos e educadores do estado .Para nós , brasileiros , isso parece coisa do outro mundo.Informa uma revista de direito dinamarquesa que as autoridades mantém jornais circulando em todos os presídios do país. As folhas são redigidas e impressas pelos próprios "hóspedes" . Nelas prevalece a mais absoluta liberdade de expressão , sendo cabível até a crítica à administração do estabelecimento , desde que feita nos termos regimentais. Todos os presos trabalham , muitos se dedicam a diversas formas de expressão artística , alguns têm permissão para passar o dia fora dos muros . Os estabelecimentos são divididos em pavilhões com vida autônoma , os próprios presos mantendo a higiene e a aparência do local. Há motivação em toda aquela atividade , há um estímulo e um desafio em cada tarefa recebida.Aos que recebem com ironia as preocupações de algumas autoridades com os presos massacrados pelo sistema desumano das prisões , é preciso recordar alguns dados fundamentais da psicologia do comportamento humano. A intolerância com esse doente que é o marginal está no fato de que nós todos sentimos agredidos por ele , por sua ação anti-social . Essa atitude se assemelha , de certo modo , à do adulto imaturo que pune a criança " como quem se vinga" , como quem devolve um golpe recebido acrescido dos juros que considera devidos. Nossa atitude face ao delinqüente é parcial , pouco amadurecida , vingativa até. E essa atitude transparece na indiferença , freqüentemente .A superpopulação carcerária , a insegurança dos presídios , o tratamento desumano concedido aos presos , lembram a mentalidade vigente na Idade Média entre médicos e diretores de hospícios , em relação aos pacientes de doenças mentais. Acreditava-se , então , que o espancamento e a solitária eram excelente tratamento para os loucos de toda ordem. Hoje , no Século da Razão . já não se compreende essa atitude intolerante em relação aos grandes desajustados do nosso meio. Todos os recursos da ciência são hoje colocados a sua disposição . A vez dos outros, os pequenos desajustados - doentes também , a seu modo , embora de maneira menos evidente - ainda não chegou . Esses , nós os agredimos com a mais cruel das armas , a indiferença.

Lisboa, Luiz Carlos. Olhos de ver ouvidos de ouvir. Rio de Janeiro difel 1977
Luiz Carlos Lisboa é escritor e jornalista

UM BEM DESVALORIZADO

Razões aparentemente misteriosas determinaram que a literatura em nossa época fosse tratada como mero passatempo , tal como a arte dos menestréis de antigamente, tolerada nos instantes de diversão , mas na verdade desprezada pelas pessoas sérias. Nessa linha de raciocínio , aqueles que se dedicam às letras foram colocados lado a lado com os profissionais de diversões públicas. Nas universidades e em pequenos grupos diletantes isso não acontece , é verdade , mas para a grande maioria das pessoas - para o homem médio contemporâneo , enfim- livros , autores e crítica pertencem a um mundo distante , do qual se lança mão quando é preciso fugir do cotidiano , da vida real.
Essa separação entre a realidade e literatura é arbitrária , tendo nascido da dissociação teórica entre ficção e fato. Para Aristóteles , as coisas se colocavam de outro modo. Sua teoria da catarse , segundo a qual a tragédia exercia um extraordinário efeito terapêutico sobre o espectador , foi revalidada em todos os tempos por homens que não se contentavam em contemplar passivamente a obra de arte , ou em fazer dela um anestésico para as dores do mundo. Em nosso século - período inclinado à análise mas avesso à introspecção e à profundidade - o distanciamento entre o homem comum e a obra literária deve-se , na aparência , à falta de tempo, à ausência de lazer. Resta saber se isso é verdade.
A catarse aristotélica falava da ação purificadora da tragédia e da música. Espectadores e ouvintes tinham certas emoções excitadas e estas atuavam como reação das próprias paixões egoístas . A arte , para o grego , sublimava , modificava , transmutava os sentimentos , fazendo o homem melhor. Mais tarde Goethe também tratou do assunto , tendo concluído que o benefício maior era colhido pelos intérpretes - atores , músicos. No século XVIII , G.E.Lessing retomou o tema de Aristóteles ,mostrando o quanto as emoções podiam ser sublimadas , por um processo de conversão , no espectador , no ouvinte , no leitor. Os estudos desse crítico e dramaturgo alemão foram continuados por J.Bernays , filólogo e seu conterrâneo , que no século XIX desenvolveu com minúcia a idéia de que toda obra de arte desvenda perspectivas novas e induz um enriquecimento próprio no espírito do homem.
A idéia de arte participante torna-se , desse modo, pelo menos redundante. A menos que o artista tenha falhado totalmente em sua intenção de produzir um trabalho de arte, ele estará estabelecendo uma comunicação inevitável e, o que é mais importante , estará semeando alguma coisa . Só a superficialidade
de nossos tempos - agravada com o mau uso da televisão , das revistinhas sentimentais ou psicologistas - explica a cegueira generalizada a respeito desse fato. Quem cobra do artista participação em alguma causa , por mais nobre que seja , está afirmando que sem essa participação a obra artística
é um mero passatempo - um espetáculo de variedades , as brincadeiras de um palhaço no picadeiro , a anedota contada num café de esquina - só podendo adquirir valor e seriedade se descamba para o engajamento , para a militância . Se veste a farda da disciplina , da obediência e da fé.
Ora, a mente criadora é aquela que investiga permanentemente . O artista que cessou de procurar não tem mais nada a dizer. As " verdades definitivas" sempre repugnaram os grandes criadores e em todos os tempos esterilizaram aqueles que se submeteram à sua tirania. E não é só nos regimes prepotentes que se dá a castração do artista : isso acontece em toda parte , quando ele crê que tem uma missão a cumprir. Essa idéia , que pode assumir o aspecto de " papel histórico" ou de " predestinação " , é igualmente vazia e - por que não dizer? - cretina , onde quer que apareça . A verdadeira liberdade , a única que produz a energia criadora de um Dostoiewski , de um Faulkner, de um Proust , de um Borges ´, é interior e por isso mesmo é a mais difícil de ser subjugada . Ela é a antítese do fanatismo religioso e político ,precisamente porque não obedece a chaves gerais , a esquemas básicos , a princípios inflexíveis.
Se a literatura é mero passatempo para o homem comum - na conceituação de Abraham Lincoln de homem comum - isso se deve à indolência mental gerada pelo excesso de informações que ele recebe. Um princípio conhecido de fisiologia nervosa explica como a demasia de dados tem o dom de inibir as células do córtex cerebral. Inibição significa sono, esquecimento , redução de atividade , inércia. Em meio a tanto lixo - a mente cansada perde a faculdade de selecionar - os valores se diluem e a Divina Comédia já não se distancia muito de uma fotonovela .Em busca do mais fácil ,surge uma necessidade quase diabólica de divertimento leve. O consumidor de banalidades está pronto para ser usado.
A catarse , a terapia profunda e lenta produzida pela obra de arte ,é substituída pelo paliativo do divertimento banal, mastigado e digerido pelos especialistas. As novelas , as revistas que vendem sexo sob o disfarce de informação científica , os jornais de escândalo , tudo serve à fome insaciável do passatempo , à vontade quase geral de adormecer e sonhar , à hipnose que afugenta o aqui e o agora - fuga que a boa arte não patrocina porque ela fala de verdades presentes no homem. E porque essa arte convoca o ser humano para o autoconhecimento ,, ele a trata ao menos em grande parte , como mero passatempo . E para poder encarar a literatura , por exemplo , como coisa acessória , o homem comum se diz " homem prático " e demonstra pelas obras e pelos autores uma espécie de complacência divertida , encarando-os como coisas que só merecem sua atenção quando as demais o permitirem. O consumidor de banalidades é firme em suas convicções.


Lisboa, Luiz Carlos. Olhos de ver ouvidos de ouvir. Rio de Janeiro difel 1977

DIGITAÇÃO VERA MUSSI - janeiro 2003

O ESPÍRITO SOPRA

Os rituais e mitos primitivos sustentaram o homem antigo contra essa vaga sensação de desamparo face à morte e ao gigantismo da natureza, que teima em acompanhá-lo até hoje. Durante milênios, ritos obscuros deram ao ser humano a sensação de que tinha um pacto com o desconhecido, e o que sempre foi extraordinário, que esse desconhecido era realidade inarredável. Mais tarde vieram as grandes religiões oficiais, que introduziram o exoterismo e afugentaram para o silêncio das cavernas, mosteiros e eremittérios o esoterismo. Essas religiões, também com seus rituais ofuscantes, lembravam ao homem seu destino divino e seus laços com o transcendental. Com o Iluminismo e, depois, com o Racionalismo, vieram a Ciência e a Tecnologia, essas religiões sem Deus, que ocuparam o vazio criado com o ceticismo puro e conciliaram o homem com a alegria. Hoje uma nova desilusão abala o Homo sapiens: O universo constituído pelo resumo dos resultados obtidos pela ciência e técnicas é mais ou menos absurdo, não faz sentido, uma vez que seus componentes fornecem indicações não compatíveis entre si. As aproximações parciais não completam um todo, não chegam a formar um conjunto unitário. As fórmulas, precisas isoladamente, não constituem uma realidade única, não se associam para formar um único desenho.
Tudo indica que se trata do vazio de novo, aquela teimosa sensação de desamparo - que não precisa ser denominada para ser identificada e muito menos compreendida - tão familiar aos gregos antigos e a tantos outros, inclusive os xamas siberianos. Contra esse vazio há, como houve em todos os tempos, o conhecimento. Não se trata, no entanto, de conhecimento intelectual, verbal, teórico, dualista e vaidoso de si mesmo, no caso. A palavra conhecimento aqui faz referência a alguma coisa impessoal, não relacionada com alguém individualmente, com noções técnicas ou valores mensuráveis em laboratórios. Não se trata igualmente de alguma descoberta nova, uma técnica elaborada, corrente filosófica ou habilidade intelectual. Os homens ouviram falar desse conhecimento em todas as épocas, em todas as partes do mundo.
Não haveria exagero em afirmar que é preciso conviver com esse vazio, é preciso aceitar essa dúvida, é necessário amar essa espécie de insegurança, para travar conhecimento com o fenômeno. Essa não é uma coisa patológica, um processo que deva ser tratado e do qual um homem fique curado. Isso faz parte da individualidade, desse núcleo a que chamamos eu. Somos isso, até certo ponto. Nesse terreno, nada pode ser ensinado, como se ensina uma técnica ou se transmite uma habilidade. Esse conhecimento é pessoal, intransmissível, direto, imediato e intrinsecamente neutro - isto é, não é bom ou mau, agradável ou desagradável, útil ou inútil. Não é, também, nada parecido com os misticismos que andaram em moda nos grandes centros, com gurus, sacerdotes, pastores inspirados, ou coisa semelhante. A respeito dessa insegurança que assusta o homem, e que o lançou em tantas aventuras ritualistas, atrás de uma tranqüilidade que não se obtém com ilusões desse tipo, basta dizer que essa insegurança não pode ser rejeitada, simplesmente.
Dar a ela um rótulo, enquadrando-a nas muitas correntes de pensamento que se multiplicam pelo mundo, nós a repudiamos, ou a dominamos. Isso é bem evidente. Quando chamamos alguma coisa pelo nome, quando lhe acrescentamos um adjetivo, nós estamos controlando essa coisa, de modo sutil, mas estamos. Chamar a tudo isso de especulação, ou fantasia, é simplesmente negar um fato que esta em toda parte e em todo mundo com uma gota de consciência. Toda essa agitação humana - através das sutilezas do pensamento ou por meio de ação dinâmica - tem um mesmo sentido e aponta na mesma direção. Estamos sempre nos ocupando, temendo um encontro frontal justamente com esse vazio - que a bem da verdade não devia ser chamado assim, porque não se trata de vazio propriamente. O importante no entanto, é estar atento ao que acontece com a única pessoa que podemos ver por dentro e por fora, embora raramente com isenção, nós mesmos.
As religiões, quase todas elas, tiveram sempre dois aspectos e falaram basicamente das mesmas coisas. Esses aspectos não foram intencionalmente produzidos, mas corresponderam a necessidades ainda hoje identificáveis. A maioria dos homens vive em absoluta alienação, isto é, totalmente dissociada de sua realidade pessoal imediata. Para esses, tudo o que escapa às funções biológicas e aos temores mais elementares é inexistente. Nenhum conhecimento intelectual pode mudar essa situação. Para outros, no entanto, alguns fatos fundamentais são perceptíveis desde cedo, e se a luta pela sobrevivência não concorre para embrutecer essa percepção, esses fatos se impõem tão logo o indivíduo consegue conhecer alguma coisa de si mesmo. Esse conhecimento, infelizmente, raramente se faz num divã de psicanalista. Ao contrário mesmo - e a observação desses aspectos leva muito longe, às vezes - costuma dificultar muito o empreendimento. Esses fatos fundamentais, que se manifestam aparentemente ao acaso, são referidos pelo homem desde que o mundo é mundo. Como "o Espírito sopra ao acaso", não há muito o que dizer sobre essa desconcertante manifestação do desconhecido, a não ser que tudo o que lhe diz respeito seja impossível de ser definido, posto em classificações, preso em rótulos, limitado em verbetes enciclopédicos, dissecado em laboratórios, armazenado em computadores ou sequer fixado na memória. E o pior é que "o Espírito sopra ao acaso".

in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 18-12-78