quarta-feira, 5 de junho de 2013

ENCONTRO COM BOSS

Neurose e loucura parecem ter um ponto em comum, além do afastamento da realidade: a pobreza interior. Essa é uma das conclusões de Medard Boss, autor de Angustia, Culpa e Libertação (Livraria Duas Cidades), editado entre nós no ano passado. Agora a Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial - Daseinanalyse, por iniciativa do psicoterapeuta Solon Spanoudis, publica um resumo do pensamento de Boss com referência a alguns aspectos da analise psicológica e das possibilidades da psicoterapia. A principal revelação com encontro com Boss é a espantosa independência desse estudioso que colaborou pessoalmente com Freud, Ernest Jones, Reich e Jung, considerando, no entanto, o passo decisivo de sua vida uma grande aproximação com Martin Heidegger.
No que se refere ao problema sempre polêmico dos sonhos, Boss fala de uma paciente sujeita a depressões que sonhava  repetidamente estar encolhida num canto de um vagão de carga, no fundo de um oceano gelado, em completa desolação e ausência de vida. Na teoria freudiana, o oceano é símbolo do ventre materno. Interrogado a respeito, Jung limitou-se a dizer que aquele oceano devia significar outra coisa e que, em última análise, era o arquétipo do inconsciente coletivo. Para Boss, o importante é que a existência da paciente estivesse aberta apena para aquela pobreza, permanecendo fechada para todas as outras possibilidades da vida, como o céu azul, as plantas e outras vidas. “Sempre que uma existência é assim fechada e não permite que suas possibilidades sejam livremente cumpridas, esta afinada na depressão.” Se uma existência é aberta para realizar suas possibilidades de relacionamento com as coisas, esta afinada na felicidade. Tudo o que se pode dizer daquele sonho repetido, explica Boss, ~e que a existência da sonhadora , no momento do sonho pelo menos, estava afinada na depressão e na solidão e cerrada para a percepção de todas as coisas vivas.
Medard Boss simplesmente afasta a suposição de que as coisas no sonho podem significar algo que está encoberto, porque isso pressupõe uma segunda pessoa que sabe que tem qualquer coisa a esconder. “As coisas sonhadas significam nada mais aquilo que mostram”, conclui. Fora do sonho, a paciente pode perceber que sua existência é semelhantemente vazia. A pobreza interior  deixara ali suas marcas e toda aproximação terapêutica tinha de partir  das significações  vistas no sonho, em tudo semelhante às da vida em estado de vigília. E é neste estado que podemos tomar contato com nossas significações.
Segundo Boss, “todos os sintomas patológicos corporais e os psíquicos são sempre privações e podem ser compreendidos como reduções de possibilidade de entender uma coisa em toda  sua amplitude e riqueza de conteúdo”. A neurose a e psicose são exatamente isso, em variados graus. A Dasein Analytik – termo formulado  por Heidegger, abrangentemente de todos os caracteres da existência humana, mais uma ontologia que uma psicologia – tenta descrever a maneira exata da distorção do entendimento, e da redução do entender. O entendimento das coisas em todo seu significado é parte fundamental da psicoterapia. Por isso, insiste Boss, na psicoterapia é preciso apenas descrever tão adequadamente quanto possível o fenômeno estudado. Um esquizofrênico, por exemplo, dispõe de poucas possibilidades de relacionamento com o mundo e as pessoas. Os débeis mentais percebem ainda menos. Sendo possível uma abertura, uma relação com a humanidade, há sempre melhora.
A maneira de existir do paciente neurótico ou psicótico é um modo de existir humano que pertence também, como possibilidade, a nós mesmos. “Nós dispomos dessa possibilidade, mas não estamos reduzidos a ela, enquanto que os doentes estão limitados àquela única maneira de existir”. Assim afirma Medard Boss, o psicoterapeuta tem , em primeiro lugar , de mostrar ao paciente que também há outros e mais livres modos de existir e, em seguida, dar-lhe coragem de experimentar esses outros modos. Nesse ponto, a Daseinanalyse é original e extraordinariamente criadora, se comparada com todas as correntes da psicoterapia que abriram caminhos a partir do começo deste século. Em Heidegger, fonte de inspiração da Terapia Existencial, tudo se refere ao ser. Nada, portanto, é filosofia, sendo sempre ontologia. O entendimento do homem ocupa lugar de honra naquele pensamento. NA cura do espírito humano – vastamente lesado em nossa época – tudo se limita ao entendimento, porque a possibilidade de entender constitui a essência da existência  do homem. O que Heidegger chamava de “salto do pensamento” é a talvez a coisa mais importante, entre todas as demais. Esse salto leva à compreensão da existência “como entendimento estendido através  de todo o alcance do que chamamos mundo”.
Sendo a pobreza interior a fonte de todo sofrimento do chamado psiquismo, a única terapia razoável é aquela que supõe o conhecimento. Medard Boss usa uma imagem para facilitar a apreensão do que deseja transmitir – e nem sempre é fácil entende-lo, face aos nossos condicionamentos -, expressando-a dessa forma: “Comparo o entendimento com a luz que atravessa o espaço e ilumina as coisas, mas não as faz. A Dasein Alalytik só vê como é a luz, a qual não faz as coisas mas permite que elas apareçam, que se tornem visíveis”. E Boss acrescenta que essa visão ontológica não pode ser provada cientificamente. Muito menos um fato científico pode provar a verdade de uma visão ontológica. “Ao contrário – acrescenta -, cada percepção de uma coisa, cada prova cientifica pressupõe uma visão ontológica”. O que não é de admirar. Afinal, embora os cientistas pretendam estar ligados somente às coisas empíricas, nada tendo a ver com a filosofia, eles se baseiam também numa filosofia. “Justamente esta – diz Medard Boss – que pressupõe que somente o mensurável existe verdadeiramente.”

in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Quinta-feira, 28-10-76

sexta-feira, 31 de maio de 2013

ENTRE O CÉU E A TERRA

          Martin Heidegger referiu-se um dia, em seu luminoso O Caminho do Campo ( Der Feldweg), ao crescimento interior do homem, tão distante e diverso da maturação do corpo. Falou então de uma dessas verdades fundamentais que não costumam ser encontradas nos livros eruditos, nas enciclopédias exaustivas e nem mesmo nas palavras dos condutores de homens. Dizia ele: "A consistência e o perfume do carvalho insinuam a lentidão e a constância com que a árvore cresce. O próprio carvalho da testemunho de que só esse crescer pode engendrar o que permanece e frutifica. Crescer quer dizer abrir-se à amplidão do céu mas também deitar raízes nas profundezas da terra. Tudo que é real e autêntico só atinge a maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, essas duas coisas: disponível ao apelo do céu mais alto e protegido pelo resguardo da terra que tudo oculta e produz".
          A segurança psicológica, impossível na prática, é uma velha e almejada aspiração humana. Se ela é impraticável, no entanto, uma relativa tranquilidade é requisito essencial a todo trabalho criativo – inclusive o mais importante de todos, que é a maturação interior, finalidade e desígnio daqueles que levantam uma ponta do véu que cobre sua própria natureza. Essa estabilidade mínima do corpo e da alma permite um estado de repousado alerta – não há paradoxo aqui – em que atuam forças inteiramente estranhas à consciência humana, tal como a conhecemos. De fato, não é de hoje que algumas cabeças privilegiadas falam da existência de “uma outra margem”  no espírito do homem, o que foi confundido com “vida além da morte”, existências anteriores em outros corpos, e variações no gênero. Não é oportuno discutir aqui essas interpretações e as causas que as determinam. Importa saber que a consciência – essa noção de um eu no centro dos acontecimentos, seus desejos e aversões – não é responsável pelo que há de realmente criativo do indivíduo, nem abre caminho para a maturidade, ou na direção do “céu mais alto” de que fala Heidegger. A consciência é rotineira, ardilosa, só deseja sua própria permanência, teme tudo o que parece novo, olha apenas na direção que quer. Ela nunca esta disponível aos apelos da vida e se busca o “resguardo da terra” e por puro medo e por convencionalismo.
          Nas primeiras linhas de O caminho do Campo Martin Heidegger  revela ao leitor o que ele, pessoalmente, não teria talvez muita esperança que fosse disseminado. Se o homem compreender o exemplo do carvalho – o crescer que engendra e frutifica – manterá seus pés firmes plantados no chão, como profundas raízes, e poderá ter sua cabeça voltada para o alto, de onde vem toda inspiração, bem como a percepção da beleza, o conhecimento de si mesmo e do mundo. Os que são como o carvalho não podem – nem pensam nisso com certeza - fazer ninguém à sua semelhança. Em toda sua intensidade, ser ocupa todo espaço e todo tempo, e não deixa margem para os disfarces da vaidade que assomam como trabalho missionário, argumentação passional ou competição. Meister Eckardt pensador e teólogo da escola renana, criou uma palavra, Istkeit, para designar essa coisa e ao mesmo tempo indescritível que é ser, pura e totalmente.
          O Psiquiatra Anthony Storr, em artigo publicado no The Observer, há alguns anos, falava no conhecimento precário que temos das demais pessoas e do mundo em redor, quando nos falta uma certa e decisiva forma de maturação ou crescimento. “Quando, em nossa vida, entramos em contato com situações novas e nos colocamos diante de pessoas desconhecidas, arrastamos conosco, nesses contatos, os preconceitos formados no passado e as experiências ganhas no trato com outras pessoas e situações. Esses preconceitos nós os projetamos sobre aqueles diante dos quais nos colocamos. De fato, chegar a conhecer alguém é uma questão de eliminação de projeções. Questão de afastar a cortina de fumaça de como imaginamos que ela é, para substituí-la pela realidade de como ela realmente é”. Essa “eliminação de projeções”, difícil e rara – quando sequer é percebida como necessidade – resulta do amadurecimento interior e não pode ser ministrada em gotas, naturalmente. Não será pelo esforço, pela chamada força de vontade, pela vaidade, nem no divã do analista ou orando automaticamente no templo, que chegaremos lá. Há que compreender, antes de tudo, a realidade dessas coisas. Há que colocar os pés no chão, protegendo-se “no resguardo da terra”, a fim de viver com simplicidade e realismo o dia-a-dia. E há, finalmente, que entregar-se “ao apelo do céu mais alto”, a parte mais difícil do desafio.
        A lentidão do processo revela a sua profundidade e a sua inacessibilidade à vontade e ao pensamento do homem. Isso esta, de fato, além de toda iniciativa humana. Esse crescimento interior, essa maturação quase imperceptível – inexistente para alguns, desprezível para outros – são magníficos na medida em que afastam o indivíduo do sofrimento fútil e frequente, mal que vitima a absoluta maioria. Como o espirito atilado de Heidegger captou bem, só seu ritmo natural assegura o advento e a permanência dos frutos.. Se o processo pudesse ser precipitado, controlado e compreendido pelo homem, seria falível, talvez inconsistente, sujeito às variações da vontade humana. Não havia de merecer o resguardo da terra, nem aspiraria ao apelo do céu mais alto. Assim, não seria o que é, não mereceria o nosso espanto de homem comum, nem Heidegger teria falado nele.


in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 6-9-76