Martin Heidegger referiu-se um dia, em seu luminoso O Caminho do Campo (
Der Feldweg), ao crescimento interior do homem, tão distante e diverso da
maturação do corpo. Falou então de uma dessas verdades fundamentais que não
costumam ser encontradas nos livros eruditos, nas enciclopédias exaustivas e
nem mesmo nas palavras dos condutores de homens. Dizia ele: "A
consistência e o perfume do carvalho insinuam a lentidão e a constância com que
a árvore cresce. O próprio carvalho da testemunho de que só esse crescer pode
engendrar o que permanece e frutifica. Crescer quer dizer abrir-se à amplidão
do céu mas também deitar raízes nas profundezas da terra. Tudo que é real e
autêntico só atinge a maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, essas duas
coisas: disponível ao apelo do céu mais alto e protegido pelo resguardo da
terra que tudo oculta e produz".
A
segurança psicológica, impossível na prática, é uma velha e almejada aspiração
humana. Se ela é impraticável, no entanto, uma relativa tranquilidade é
requisito essencial a todo trabalho criativo – inclusive o mais importante de
todos, que é a maturação interior, finalidade e desígnio daqueles que levantam
uma ponta do véu que cobre sua própria natureza. Essa estabilidade mínima do
corpo e da alma permite um estado de repousado alerta – não há paradoxo aqui –
em que atuam forças inteiramente estranhas à consciência humana, tal como a
conhecemos. De fato, não é de hoje que algumas cabeças privilegiadas falam da existência
de “uma outra margem” no espírito do
homem, o que foi confundido com “vida além da morte”, existências anteriores em
outros corpos, e variações no gênero. Não é oportuno discutir aqui essas
interpretações e as causas que as determinam. Importa saber que a consciência –
essa noção de um eu no centro dos
acontecimentos, seus desejos e aversões – não é responsável pelo que há de
realmente criativo do indivíduo, nem abre caminho para a maturidade, ou na
direção do “céu mais alto” de que fala Heidegger.
A consciência é rotineira, ardilosa, só deseja sua própria permanência,
teme tudo o que parece novo, olha apenas na direção que quer. Ela nunca esta
disponível aos apelos da vida e se busca o “resguardo da terra” e por puro medo
e por convencionalismo.
Nas primeiras linhas de O caminho do Campo Martin Heidegger revela
ao leitor o que ele, pessoalmente, não teria talvez muita esperança que fosse
disseminado. Se o homem compreender o exemplo do carvalho – o crescer que
engendra e frutifica – manterá seus pés firmes plantados no chão, como
profundas raízes, e poderá ter sua cabeça voltada para o alto, de onde vem toda
inspiração, bem como a percepção da beleza, o conhecimento de si mesmo e do
mundo. Os que são como o carvalho não podem – nem pensam nisso com certeza - fazer
ninguém à sua semelhança. Em toda sua intensidade, ser ocupa todo espaço e todo tempo, e não deixa margem para os
disfarces da vaidade que assomam como trabalho missionário, argumentação passional
ou competição. Meister Eckardt pensador
e teólogo da escola renana, criou uma palavra, Istkeit, para designar essa coisa e ao mesmo tempo indescritível
que é ser, pura e totalmente.
O Psiquiatra Anthony Storr, em artigo publicado no The Observer, há alguns anos, falava no conhecimento precário que
temos das demais pessoas e do mundo em redor, quando nos falta uma certa e
decisiva forma de maturação ou crescimento. “Quando, em nossa vida, entramos em
contato com situações novas e nos colocamos diante de pessoas desconhecidas,
arrastamos conosco, nesses contatos, os preconceitos formados no passado e as
experiências ganhas no trato com outras pessoas e situações. Esses preconceitos
nós os projetamos sobre aqueles diante dos quais nos colocamos. De fato, chegar
a conhecer alguém é uma questão de eliminação de projeções. Questão de afastar
a cortina de fumaça de como imaginamos que ela é, para substituí-la pela
realidade de como ela realmente é”. Essa “eliminação de projeções”, difícil e
rara – quando sequer é percebida como necessidade – resulta do amadurecimento
interior e não pode ser ministrada em gotas, naturalmente. Não será pelo
esforço, pela chamada força de vontade, pela vaidade, nem no divã do analista
ou orando automaticamente no templo, que chegaremos lá. Há que compreender,
antes de tudo, a realidade dessas coisas. Há que colocar os pés no chão,
protegendo-se “no resguardo da terra”, a fim de viver com simplicidade e
realismo o dia-a-dia. E há, finalmente, que entregar-se “ao apelo do céu mais
alto”, a parte mais difícil do desafio.
A lentidão do processo revela a sua
profundidade e a sua inacessibilidade à vontade e ao pensamento do homem. Isso
esta, de fato, além de toda iniciativa humana. Esse crescimento interior, essa
maturação quase imperceptível – inexistente para alguns, desprezível para
outros – são magníficos na medida em que afastam o indivíduo do sofrimento
fútil e frequente, mal que vitima a absoluta maioria. Como o espirito atilado
de Heidegger captou bem, só seu ritmo natural assegura o advento e a
permanência dos frutos.. Se o processo pudesse ser precipitado, controlado e
compreendido pelo homem, seria falível, talvez inconsistente, sujeito às
variações da vontade humana. Não havia de merecer o resguardo da terra, nem
aspiraria ao apelo do céu mais alto. Assim, não seria o que é, não mereceria o
nosso espanto de homem comum, nem Heidegger teria falado nele.
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