sexta-feira, 31 de maio de 2013

ENTRE O CÉU E A TERRA

          Martin Heidegger referiu-se um dia, em seu luminoso O Caminho do Campo ( Der Feldweg), ao crescimento interior do homem, tão distante e diverso da maturação do corpo. Falou então de uma dessas verdades fundamentais que não costumam ser encontradas nos livros eruditos, nas enciclopédias exaustivas e nem mesmo nas palavras dos condutores de homens. Dizia ele: "A consistência e o perfume do carvalho insinuam a lentidão e a constância com que a árvore cresce. O próprio carvalho da testemunho de que só esse crescer pode engendrar o que permanece e frutifica. Crescer quer dizer abrir-se à amplidão do céu mas também deitar raízes nas profundezas da terra. Tudo que é real e autêntico só atinge a maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, essas duas coisas: disponível ao apelo do céu mais alto e protegido pelo resguardo da terra que tudo oculta e produz".
          A segurança psicológica, impossível na prática, é uma velha e almejada aspiração humana. Se ela é impraticável, no entanto, uma relativa tranquilidade é requisito essencial a todo trabalho criativo – inclusive o mais importante de todos, que é a maturação interior, finalidade e desígnio daqueles que levantam uma ponta do véu que cobre sua própria natureza. Essa estabilidade mínima do corpo e da alma permite um estado de repousado alerta – não há paradoxo aqui – em que atuam forças inteiramente estranhas à consciência humana, tal como a conhecemos. De fato, não é de hoje que algumas cabeças privilegiadas falam da existência de “uma outra margem”  no espírito do homem, o que foi confundido com “vida além da morte”, existências anteriores em outros corpos, e variações no gênero. Não é oportuno discutir aqui essas interpretações e as causas que as determinam. Importa saber que a consciência – essa noção de um eu no centro dos acontecimentos, seus desejos e aversões – não é responsável pelo que há de realmente criativo do indivíduo, nem abre caminho para a maturidade, ou na direção do “céu mais alto” de que fala Heidegger. A consciência é rotineira, ardilosa, só deseja sua própria permanência, teme tudo o que parece novo, olha apenas na direção que quer. Ela nunca esta disponível aos apelos da vida e se busca o “resguardo da terra” e por puro medo e por convencionalismo.
          Nas primeiras linhas de O caminho do Campo Martin Heidegger  revela ao leitor o que ele, pessoalmente, não teria talvez muita esperança que fosse disseminado. Se o homem compreender o exemplo do carvalho – o crescer que engendra e frutifica – manterá seus pés firmes plantados no chão, como profundas raízes, e poderá ter sua cabeça voltada para o alto, de onde vem toda inspiração, bem como a percepção da beleza, o conhecimento de si mesmo e do mundo. Os que são como o carvalho não podem – nem pensam nisso com certeza - fazer ninguém à sua semelhança. Em toda sua intensidade, ser ocupa todo espaço e todo tempo, e não deixa margem para os disfarces da vaidade que assomam como trabalho missionário, argumentação passional ou competição. Meister Eckardt pensador e teólogo da escola renana, criou uma palavra, Istkeit, para designar essa coisa e ao mesmo tempo indescritível que é ser, pura e totalmente.
          O Psiquiatra Anthony Storr, em artigo publicado no The Observer, há alguns anos, falava no conhecimento precário que temos das demais pessoas e do mundo em redor, quando nos falta uma certa e decisiva forma de maturação ou crescimento. “Quando, em nossa vida, entramos em contato com situações novas e nos colocamos diante de pessoas desconhecidas, arrastamos conosco, nesses contatos, os preconceitos formados no passado e as experiências ganhas no trato com outras pessoas e situações. Esses preconceitos nós os projetamos sobre aqueles diante dos quais nos colocamos. De fato, chegar a conhecer alguém é uma questão de eliminação de projeções. Questão de afastar a cortina de fumaça de como imaginamos que ela é, para substituí-la pela realidade de como ela realmente é”. Essa “eliminação de projeções”, difícil e rara – quando sequer é percebida como necessidade – resulta do amadurecimento interior e não pode ser ministrada em gotas, naturalmente. Não será pelo esforço, pela chamada força de vontade, pela vaidade, nem no divã do analista ou orando automaticamente no templo, que chegaremos lá. Há que compreender, antes de tudo, a realidade dessas coisas. Há que colocar os pés no chão, protegendo-se “no resguardo da terra”, a fim de viver com simplicidade e realismo o dia-a-dia. E há, finalmente, que entregar-se “ao apelo do céu mais alto”, a parte mais difícil do desafio.
        A lentidão do processo revela a sua profundidade e a sua inacessibilidade à vontade e ao pensamento do homem. Isso esta, de fato, além de toda iniciativa humana. Esse crescimento interior, essa maturação quase imperceptível – inexistente para alguns, desprezível para outros – são magníficos na medida em que afastam o indivíduo do sofrimento fútil e frequente, mal que vitima a absoluta maioria. Como o espirito atilado de Heidegger captou bem, só seu ritmo natural assegura o advento e a permanência dos frutos.. Se o processo pudesse ser precipitado, controlado e compreendido pelo homem, seria falível, talvez inconsistente, sujeito às variações da vontade humana. Não havia de merecer o resguardo da terra, nem aspiraria ao apelo do céu mais alto. Assim, não seria o que é, não mereceria o nosso espanto de homem comum, nem Heidegger teria falado nele.


in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 6-9-76

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