sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O CRIMINOSO COMO VÍTIMA

Afora a grande charlatanice da superioridade racial ,ninguém jamais ousaria afirmar, em sã consciência, que o ser humano é melhor ou pior nessa ou naquela latitude, com essa ou aquela coloração de pele , vivendo nessa ou naquela cultura. Aceita a premissa de que os homens são fundamentalmente iguais - e essa verdade está impressa no código genético da espécie humana - resta determinar a razão das profundas , embora não numerosas , diferenças de comportamento social num povo ou noutro. Diz o Time , por exemplo, que na Holanda as prisões estão desaparecendo graças a um bem-vinda escassez de criminosos. Lá, ntre 13 milhões de habitantes , há apenas 2.800 pessoas cumprindo pena nas prisões , das quais só 42 receberam sentenças superiores a cinco anos.A filosofia do sistema penitenciário holandês tem encarado tradicionalmente o preso como uma espécie de enfermo que precisa ser recuperado para a vida normal. Isso porque os penalistas daquele país sempre se recusaram a conceder ao estado o direito de punir os que cometiam atos anti-sociais . Para eles - e essa mentalidade só floresceu com a criação de um clima em que os principais valores do humanismo foram sempre estimulados - os chamados delinqüentes eram ovelhas tresmalhadas do rebanho , que precisavam ser reconduzidas ao aprisco pelo grande pastor estatal . Uma concepção , antes de tudo, principalmente cristã.Tratada como doença , a criminalidade encontrou nisso um desestímulo inicial. Os grandes feitos marginais não eram tratados com esse misto de admiração e censura comum no noticiário dos jornais , gerador da secreta admiração existente em todo coração jovem contestador pelos Rafles, Arsene , Lupins ,Pepe-le-Mokos e outros heróis menos votados do baixo mundo. Talvez não seja por outra razão que a moda vista o moço de hoje como o bandido de antigamente. O fato é que a imagem do doente é muito menos sedutora que a do aventureiro.O direito de punir é ,sem dúvida ,muito discutível . Tem o Estado o direito de afastar o elemento anti-social e tem o dever de o recuperar ,disso ninguém duvida. A idéia de punição , acreditamos , é remanescente de conceitos primitivos , ou de qualquer reentrância do Direito Divino, e é muito pouco compatível com as modernas noções jurídicas - que pelo menos em teoria a humanidade , face ao seu conhecimento mais nítido do Bem e do Mal. Ora, esses fatos e essas concepções tornam antiquada toda a terminologia do sistema penal , em que " presidiários" , "regime carcerário", " pena" , "sentença", "correcional" , são anacronismos que devem deixar o âmbito do direito vivo e passar à esfera das curiosidades verbais e dos vocábulos em desuso.A decisão do governo da Guanabara de tornar obrigatório e remunerado o trabalho em todas as prisões do Estado é um primeiro e largo passo para a humanização do sistema penal entre nós. A República Federal da Alemanha está em vésperas de aprovar um novo Código Penal. Agora que o projeto da mesma lei brasileira vai entrar em discussão no Congresso Nacional , era oportuno um exame das novidades introduzidas pelos penalistas germânicos em seu sistema penitenciário . Segundo noticiário dos jornais , as autoridades alemãs já se anteciparam às novas determinações da lei e instituíram departamentos da terapêutica social em mais de um estabelecimento penal do país . Num presídio feminino de Francforte os filhos são criados com as mães que estão sendo reabilitadas . O ambiente é considerado sadio e adequado à formação de crianças , pelos psicólogos e educadores do estado .Para nós , brasileiros , isso parece coisa do outro mundo.Informa uma revista de direito dinamarquesa que as autoridades mantém jornais circulando em todos os presídios do país. As folhas são redigidas e impressas pelos próprios "hóspedes" . Nelas prevalece a mais absoluta liberdade de expressão , sendo cabível até a crítica à administração do estabelecimento , desde que feita nos termos regimentais. Todos os presos trabalham , muitos se dedicam a diversas formas de expressão artística , alguns têm permissão para passar o dia fora dos muros . Os estabelecimentos são divididos em pavilhões com vida autônoma , os próprios presos mantendo a higiene e a aparência do local. Há motivação em toda aquela atividade , há um estímulo e um desafio em cada tarefa recebida.Aos que recebem com ironia as preocupações de algumas autoridades com os presos massacrados pelo sistema desumano das prisões , é preciso recordar alguns dados fundamentais da psicologia do comportamento humano. A intolerância com esse doente que é o marginal está no fato de que nós todos sentimos agredidos por ele , por sua ação anti-social . Essa atitude se assemelha , de certo modo , à do adulto imaturo que pune a criança " como quem se vinga" , como quem devolve um golpe recebido acrescido dos juros que considera devidos. Nossa atitude face ao delinqüente é parcial , pouco amadurecida , vingativa até. E essa atitude transparece na indiferença , freqüentemente .A superpopulação carcerária , a insegurança dos presídios , o tratamento desumano concedido aos presos , lembram a mentalidade vigente na Idade Média entre médicos e diretores de hospícios , em relação aos pacientes de doenças mentais. Acreditava-se , então , que o espancamento e a solitária eram excelente tratamento para os loucos de toda ordem. Hoje , no Século da Razão . já não se compreende essa atitude intolerante em relação aos grandes desajustados do nosso meio. Todos os recursos da ciência são hoje colocados a sua disposição . A vez dos outros, os pequenos desajustados - doentes também , a seu modo , embora de maneira menos evidente - ainda não chegou . Esses , nós os agredimos com a mais cruel das armas , a indiferença.

Lisboa, Luiz Carlos. Olhos de ver ouvidos de ouvir. Rio de Janeiro difel 1977
Luiz Carlos Lisboa é escritor e jornalista

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