sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

UM BEM DESVALORIZADO

Razões aparentemente misteriosas determinaram que a literatura em nossa época fosse tratada como mero passatempo , tal como a arte dos menestréis de antigamente, tolerada nos instantes de diversão , mas na verdade desprezada pelas pessoas sérias. Nessa linha de raciocínio , aqueles que se dedicam às letras foram colocados lado a lado com os profissionais de diversões públicas. Nas universidades e em pequenos grupos diletantes isso não acontece , é verdade , mas para a grande maioria das pessoas - para o homem médio contemporâneo , enfim- livros , autores e crítica pertencem a um mundo distante , do qual se lança mão quando é preciso fugir do cotidiano , da vida real.
Essa separação entre a realidade e literatura é arbitrária , tendo nascido da dissociação teórica entre ficção e fato. Para Aristóteles , as coisas se colocavam de outro modo. Sua teoria da catarse , segundo a qual a tragédia exercia um extraordinário efeito terapêutico sobre o espectador , foi revalidada em todos os tempos por homens que não se contentavam em contemplar passivamente a obra de arte , ou em fazer dela um anestésico para as dores do mundo. Em nosso século - período inclinado à análise mas avesso à introspecção e à profundidade - o distanciamento entre o homem comum e a obra literária deve-se , na aparência , à falta de tempo, à ausência de lazer. Resta saber se isso é verdade.
A catarse aristotélica falava da ação purificadora da tragédia e da música. Espectadores e ouvintes tinham certas emoções excitadas e estas atuavam como reação das próprias paixões egoístas . A arte , para o grego , sublimava , modificava , transmutava os sentimentos , fazendo o homem melhor. Mais tarde Goethe também tratou do assunto , tendo concluído que o benefício maior era colhido pelos intérpretes - atores , músicos. No século XVIII , G.E.Lessing retomou o tema de Aristóteles ,mostrando o quanto as emoções podiam ser sublimadas , por um processo de conversão , no espectador , no ouvinte , no leitor. Os estudos desse crítico e dramaturgo alemão foram continuados por J.Bernays , filólogo e seu conterrâneo , que no século XIX desenvolveu com minúcia a idéia de que toda obra de arte desvenda perspectivas novas e induz um enriquecimento próprio no espírito do homem.
A idéia de arte participante torna-se , desse modo, pelo menos redundante. A menos que o artista tenha falhado totalmente em sua intenção de produzir um trabalho de arte, ele estará estabelecendo uma comunicação inevitável e, o que é mais importante , estará semeando alguma coisa . Só a superficialidade
de nossos tempos - agravada com o mau uso da televisão , das revistinhas sentimentais ou psicologistas - explica a cegueira generalizada a respeito desse fato. Quem cobra do artista participação em alguma causa , por mais nobre que seja , está afirmando que sem essa participação a obra artística
é um mero passatempo - um espetáculo de variedades , as brincadeiras de um palhaço no picadeiro , a anedota contada num café de esquina - só podendo adquirir valor e seriedade se descamba para o engajamento , para a militância . Se veste a farda da disciplina , da obediência e da fé.
Ora, a mente criadora é aquela que investiga permanentemente . O artista que cessou de procurar não tem mais nada a dizer. As " verdades definitivas" sempre repugnaram os grandes criadores e em todos os tempos esterilizaram aqueles que se submeteram à sua tirania. E não é só nos regimes prepotentes que se dá a castração do artista : isso acontece em toda parte , quando ele crê que tem uma missão a cumprir. Essa idéia , que pode assumir o aspecto de " papel histórico" ou de " predestinação " , é igualmente vazia e - por que não dizer? - cretina , onde quer que apareça . A verdadeira liberdade , a única que produz a energia criadora de um Dostoiewski , de um Faulkner, de um Proust , de um Borges ´, é interior e por isso mesmo é a mais difícil de ser subjugada . Ela é a antítese do fanatismo religioso e político ,precisamente porque não obedece a chaves gerais , a esquemas básicos , a princípios inflexíveis.
Se a literatura é mero passatempo para o homem comum - na conceituação de Abraham Lincoln de homem comum - isso se deve à indolência mental gerada pelo excesso de informações que ele recebe. Um princípio conhecido de fisiologia nervosa explica como a demasia de dados tem o dom de inibir as células do córtex cerebral. Inibição significa sono, esquecimento , redução de atividade , inércia. Em meio a tanto lixo - a mente cansada perde a faculdade de selecionar - os valores se diluem e a Divina Comédia já não se distancia muito de uma fotonovela .Em busca do mais fácil ,surge uma necessidade quase diabólica de divertimento leve. O consumidor de banalidades está pronto para ser usado.
A catarse , a terapia profunda e lenta produzida pela obra de arte ,é substituída pelo paliativo do divertimento banal, mastigado e digerido pelos especialistas. As novelas , as revistas que vendem sexo sob o disfarce de informação científica , os jornais de escândalo , tudo serve à fome insaciável do passatempo , à vontade quase geral de adormecer e sonhar , à hipnose que afugenta o aqui e o agora - fuga que a boa arte não patrocina porque ela fala de verdades presentes no homem. E porque essa arte convoca o ser humano para o autoconhecimento ,, ele a trata ao menos em grande parte , como mero passatempo . E para poder encarar a literatura , por exemplo , como coisa acessória , o homem comum se diz " homem prático " e demonstra pelas obras e pelos autores uma espécie de complacência divertida , encarando-os como coisas que só merecem sua atenção quando as demais o permitirem. O consumidor de banalidades é firme em suas convicções.


Lisboa, Luiz Carlos. Olhos de ver ouvidos de ouvir. Rio de Janeiro difel 1977

DIGITAÇÃO VERA MUSSI - janeiro 2003

Nenhum comentário:

Postar um comentário