sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O ESPÍRITO SOPRA

Os rituais e mitos primitivos sustentaram o homem antigo contra essa vaga sensação de desamparo face à morte e ao gigantismo da natureza, que teima em acompanhá-lo até hoje. Durante milênios, ritos obscuros deram ao ser humano a sensação de que tinha um pacto com o desconhecido, e o que sempre foi extraordinário, que esse desconhecido era realidade inarredável. Mais tarde vieram as grandes religiões oficiais, que introduziram o exoterismo e afugentaram para o silêncio das cavernas, mosteiros e eremittérios o esoterismo. Essas religiões, também com seus rituais ofuscantes, lembravam ao homem seu destino divino e seus laços com o transcendental. Com o Iluminismo e, depois, com o Racionalismo, vieram a Ciência e a Tecnologia, essas religiões sem Deus, que ocuparam o vazio criado com o ceticismo puro e conciliaram o homem com a alegria. Hoje uma nova desilusão abala o Homo sapiens: O universo constituído pelo resumo dos resultados obtidos pela ciência e técnicas é mais ou menos absurdo, não faz sentido, uma vez que seus componentes fornecem indicações não compatíveis entre si. As aproximações parciais não completam um todo, não chegam a formar um conjunto unitário. As fórmulas, precisas isoladamente, não constituem uma realidade única, não se associam para formar um único desenho.
Tudo indica que se trata do vazio de novo, aquela teimosa sensação de desamparo - que não precisa ser denominada para ser identificada e muito menos compreendida - tão familiar aos gregos antigos e a tantos outros, inclusive os xamas siberianos. Contra esse vazio há, como houve em todos os tempos, o conhecimento. Não se trata, no entanto, de conhecimento intelectual, verbal, teórico, dualista e vaidoso de si mesmo, no caso. A palavra conhecimento aqui faz referência a alguma coisa impessoal, não relacionada com alguém individualmente, com noções técnicas ou valores mensuráveis em laboratórios. Não se trata igualmente de alguma descoberta nova, uma técnica elaborada, corrente filosófica ou habilidade intelectual. Os homens ouviram falar desse conhecimento em todas as épocas, em todas as partes do mundo.
Não haveria exagero em afirmar que é preciso conviver com esse vazio, é preciso aceitar essa dúvida, é necessário amar essa espécie de insegurança, para travar conhecimento com o fenômeno. Essa não é uma coisa patológica, um processo que deva ser tratado e do qual um homem fique curado. Isso faz parte da individualidade, desse núcleo a que chamamos eu. Somos isso, até certo ponto. Nesse terreno, nada pode ser ensinado, como se ensina uma técnica ou se transmite uma habilidade. Esse conhecimento é pessoal, intransmissível, direto, imediato e intrinsecamente neutro - isto é, não é bom ou mau, agradável ou desagradável, útil ou inútil. Não é, também, nada parecido com os misticismos que andaram em moda nos grandes centros, com gurus, sacerdotes, pastores inspirados, ou coisa semelhante. A respeito dessa insegurança que assusta o homem, e que o lançou em tantas aventuras ritualistas, atrás de uma tranqüilidade que não se obtém com ilusões desse tipo, basta dizer que essa insegurança não pode ser rejeitada, simplesmente.
Dar a ela um rótulo, enquadrando-a nas muitas correntes de pensamento que se multiplicam pelo mundo, nós a repudiamos, ou a dominamos. Isso é bem evidente. Quando chamamos alguma coisa pelo nome, quando lhe acrescentamos um adjetivo, nós estamos controlando essa coisa, de modo sutil, mas estamos. Chamar a tudo isso de especulação, ou fantasia, é simplesmente negar um fato que esta em toda parte e em todo mundo com uma gota de consciência. Toda essa agitação humana - através das sutilezas do pensamento ou por meio de ação dinâmica - tem um mesmo sentido e aponta na mesma direção. Estamos sempre nos ocupando, temendo um encontro frontal justamente com esse vazio - que a bem da verdade não devia ser chamado assim, porque não se trata de vazio propriamente. O importante no entanto, é estar atento ao que acontece com a única pessoa que podemos ver por dentro e por fora, embora raramente com isenção, nós mesmos.
As religiões, quase todas elas, tiveram sempre dois aspectos e falaram basicamente das mesmas coisas. Esses aspectos não foram intencionalmente produzidos, mas corresponderam a necessidades ainda hoje identificáveis. A maioria dos homens vive em absoluta alienação, isto é, totalmente dissociada de sua realidade pessoal imediata. Para esses, tudo o que escapa às funções biológicas e aos temores mais elementares é inexistente. Nenhum conhecimento intelectual pode mudar essa situação. Para outros, no entanto, alguns fatos fundamentais são perceptíveis desde cedo, e se a luta pela sobrevivência não concorre para embrutecer essa percepção, esses fatos se impõem tão logo o indivíduo consegue conhecer alguma coisa de si mesmo. Esse conhecimento, infelizmente, raramente se faz num divã de psicanalista. Ao contrário mesmo - e a observação desses aspectos leva muito longe, às vezes - costuma dificultar muito o empreendimento. Esses fatos fundamentais, que se manifestam aparentemente ao acaso, são referidos pelo homem desde que o mundo é mundo. Como "o Espírito sopra ao acaso", não há muito o que dizer sobre essa desconcertante manifestação do desconhecido, a não ser que tudo o que lhe diz respeito seja impossível de ser definido, posto em classificações, preso em rótulos, limitado em verbetes enciclopédicos, dissecado em laboratórios, armazenado em computadores ou sequer fixado na memória. E o pior é que "o Espírito sopra ao acaso".

in Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo
Segunda-feira, 18-12-78

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